domingo, 9 de dezembro de 2007

gostar de palavras

"Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecita de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão conchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem compassadamente silenciosamente duma igual vivificante seiva.
[...]
Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita da Lina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de ler parvoíces que só em português é possível ler, e viro-me para o lado esquerdo: é um hálito levemente soprado, pedindo beijos no escuro que me embala até adormecer. Voltamo-nos, remexemos, tomados pelo medo de estarmos vivos, pela alegria dos sonhos, quem sabe!, e encontramos, chocamos carne, carne que não é nossa, que é um exagero, um a-mais do nosso corpo, mas aqui, tão perto e tão quente, é como se fosse nossa carne também: agarrada (palpitante, latejando) pelos nossos dedos; calada (dormindo, confiante) encostada ao nosso suor."
*



*Excerto de "Comunidade" de Luiz Pacheco


Estou à beira de mudar de década. Daqui a 22 dias faço 30 anos e estou tranquila. Não sei como vou passar a noite, tão pouco o que farei durante o dia. Talvez entre no novo ano apenas na minha companhia, mas estou serena. Os últimos anos não têm sido fáceis, mas lentamente vou conquistando, finalmente, a paz de espírito de que necessito. Pesem embora as feias e indeléveis cicatrizes que me enfeitam o corpo e os gestos - como diria alguém que conheço, as cicatrizes (as físicas, mas penso que se pode dizer o mesmo das outras...) são "marcas da vida, sinais bonitos, um mapa alternativo do corpo, tatuagens involuntárias" - gosto da vida que fiz para mim.

Estou à beira de fazer 30 anos. E sei que vou gostar de os ter. Se os vou celebrar? Talvez, mas em silêncio. Com um bom vinho e um sorriso largo. A guerra tem sido dura, mas já levo a vitória em algumas batalhas, sei-o. Para ti, homem que foste meu, que prometeste estar comigo nesta altura e em todas as outras e não estás: tenho pena. Poderia ter sido para o resto da vida. Não foi. Já parei de chorar por ti. Demorou alguns anos, o luto. Foi preciso travar graves lutas comigo e com outros, mas parei já. Cresci muito. Muito mesmo. Mais do que já havia crescido antes de ti. E lamento que não estejas por perto para ver e admirar a mulher que me tornei.

Estou à beira de fazer 30 anos. E apesar de hoje ter visto um presente que gostava de receber - a obra "Comunidade", com texto de Luiz Pacheco e pinturas de Cruzeiro Seixas - o preço é absolutamente proibitivo para mim, jornalista tesa, e para todos os meus, muitos deles, igualmente jornalistas tesos (afinal de contas, a minha livraria preferida ainda continua a ser a Feira da Ladra)... A não ser que consiga negociar com o banco o não pagamento de duas prestações do meu crédito à habitação. Passaria a viver, literalmente, debaixo da ponte, mas com a obra de Luiz Pacheco para me dar alento.

Sonhos à parte, estou à beira de fazer 30 anos. E se algum dos meus amigos, amigas, leitores e admiradores (eheheh... pois sim!) quiser surpreender-me e fazer-me sorrir no dia em que mudo de década, é simples: é oferecer-me um exemplar de "Comunidade", não da edição de 750 euros, mas uma qualquer edição. Não é fácil, dada a raridade do livro. Mas pelos excertos que consegui ler aqui e ali, é daquelas obras que nos fazem gostar ainda mais de palavras. E como eu gosto de gostar de palavras...


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