segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

reescrever-me-te (porque a escrita se escreveu antes da história)

filmes mudos
“Escrever é perigoso quando estamos a sofrer. Precisamos de dor para ter uma certeza. E é só isso que nos resta no final: possuir uma dor é possuir uma certeza. Ouvir que outro sofre é possuir uma dúvida.”

Demorou-se alguns segundos nesta última frase e, pensativa, fechou o livro. Inquieta. Pensou na dor. Numa dor anónima, uma dor qualquer, sem carne ou espírito, apenas uma certeza de existir. E sorriu baixinho, enquanto estendia a mão para o maço de tabaco que repousava junto à história que acabara de fechar.
- Desculpe, mas não pode fumar aqui...
Sobressaltada pela voz inesperada, olhou para a parede e viu, vindo do ar, um sinal inequívoco. Desfez-se em desculpas à empregada e procurou uma mesa vaga mais à frente, onde as vozes se perdessem no fumo errante.
- Fumar faz-lhe mal à saúde...
A nova localização trazia, por arrasto, vizinhança intrometida. Lançou um olhar furtivo na direcção do homem grisalho, sentado a pouco mais de um metro de distância. A voz pausada e grave correspondia à figura discreta e compenetrada. O cabelo e a barba envelhecidos indicavam uns 45 ou 50 anos, visíveis também numa certa altivez da postura. Era com ela que falava - contrariando toda a vontade que tinha de se manter irrelevante no espaço. Era para ela que olhava. Não se deixou intimidar.
- Também a vida faz mal à saúde, mas não é por isso que deixamos de a consumir - retorquiu, sem levantar os olhos da mesa.
O silêncio que se seguiu à afirmação fê-la olhar para o seu interlocutor. Tê-lo-ia ofendido com tamanha rispidez defensiva? Viu que ele próprio pegava num cigarro e tentava acendê-lo, em vão.
- Importa-se que use o seu isqueiro? O meu parece não querer colaborar com a minha predisposição para o vício.
Tinha um sarcástico à sua frente! Estendeu-lhe a caixa de fósforos e voltou um pouco atrás na narrativa:
- Não uso isqueiro. Espero que ainda saiba usar um fósforo... Desculpe se fui indelicada há pouco. Não estou habituada, aliás, não gosto muito que estranhos perturbem o meu espaço.
- Hum, é uma justificação. Mas repare, eu já não sou um estranho. Acabou de me ceder um dos seus fósforos. E, para além disso, não estou a entrar no seu espaço, mas a relembrá-la do óbvio. Sabe que, às vezes, precisamos que nos relembrem o óbvio...
Olhou para o relógio e perguntou-se onde é que a conversa iria parar. Sentiu um ímpeto de poder, mentalmente, acelerar o ponteiro dos minutos, de forma a que chegasse depressa a hora da sessão.
- Obviamente... – assentiu, sem grande entusiasmo.
- Desculpe se estou a aborrecê-la. Não é de todo a minha intenção. Achei interessante a sua presença. Vista daqui pareceu-me tão... inacessível.

Inacessibilidade. Flutuo por entre as luzes de uma cidade que talvez seja Lisboa. Baixo até ao chão e caminho sem tempo nem espaço, sem plano algum de fundo. Poderia mesmo nem ser eu. E daí, talvez não seja.

- O que é que veio ver?
- Estou a seguir o ciclo do Murnau. Hoje vim ver “O Último Homem”.
- Pelo que li parece ser um belo filme. Muito triste, pesado, sobretudo. De qualquer forma, sinto que vai gostar...
- Olhando para mim vê-se logo que sou uma grande admiradora de cinema mudo alemão do princípio do século XX, não é?
Riram-se ambos com o pretenciosismo consciente da frase. Ela continuou:
- Admito, é preciso ter estômago... Não é fácil ver um filme mudo a estas horas. O homem moderno já não está habituado ao silêncio. À primeira oportunidade, os olhos fecham-se, o corpo molda-se à cadeira... E você, veio ver o quê?
- A si.
Soltou uma gargalhada tão sonora que envergonharia qualquer película muda. Nas mesas ao lado olharam-na, num misto de curiosidade e desaprovação, mas logo a explosão caiu no esquecimento pois ouviu-se, vinda do ar, a música.

“Somewhere... over the rainbow...”

Era o sinal. Levantou-se e olhou-o de frente, sem medo algum de se aperceber da própria imagem reflectida nos seus olhos. Não adivinhou nenhum gesto, nenhuma palavra ou intenção suspensa. Atreveu-se a perguntar:
- Então, não vem? O filme vai começar a qualquer momento...
Ele olhou-a, sorveu o cigarro mais uma vez e, por entre o fumo a escapar da boca, ripostou, medindo cada palavra dita.
- Podes tratar-me por tu...

6 comentários:

passarola disse...

muito bom!
"Também a vida faz mal à saúde, mas não é por isso que deixamos de a consumir"... nem sempre ;)

passarola disse...

e posto isto, vou fumar um cigarro ;)

laura disse...

Este conto já foi escrito há um tempinho... Quando penso nisso, já lá vão ums dois anos... Humpf! Vou esfumaçar, a ver se me passa a neura, já que os anos, esses, estão a passar depressa demais... :)

Naked Lunch disse...

...-se... as saudades que tinha de encontrar um texto destes por aqui... a quase raiva de não escreveres... raiva não... desilusão... tristesa... saudade mesmo... é lindo o teu texto... e a foto tb... obrigado por um bom momento de leitura... vou voltar e ler, muitas vezes... um óptimo ano para ti... e até que enfim (desculpa a sinceridade)... grande abraço!

PedraNoCharco disse...

Texto muito muito bom. E eu que ando numa fase em que ler mais de 3linhas já é um sacrificio

laura disse...

naked lunch: Estás desculpado. E obrigada. ;)))

pedra no charco: :))) Bom ano para ti!! E... gracias. ;)