- Ó r’pariga, tu não te faças envergonhada. Come e bebe p’ra diante!
Com isto, a mão encarquilhada do ti Zé voltou a encher-me o copo de vinho. Ao mesmo tempo, a ti Fernanda cortava mais umas fatias de broa de milho e outras tantas de chouriça. Servi-me de um bocado de cada e, enquanto roía a carne, analisei as paredes em redor. Aqui e ali, calendários de outros anos. Todos com a primeira folha, a que desejava feliz ano novo, arrancada. Todos parados no tempo entre Janeiro e Fevereiro como se, em cada ano, não valesse a pena passar além disso. Num dos calendários, uma imagem da virgem com o coração em chamas. Um coração “flambé”, pensei.
Despejei o copo de vinho à medida que as conversas em redor da mesa passavam de mão em mão. Volta e meia apurava o ouvido, quando julgava ouvir um nome familiar, uma situação conhecida. Ataquei novamente a chouriça sob o olhar satisfeito do ti Zé e resolvi participar na cavaqueira:
- Então e o tio Américo e a tia Cremilde? Ainda vivem na mesma casa?
Os olhares voltaram-se para mim, não sei se por ter, finalmente, soltado um som, ou por ser, talvez, a minha curiosidade inconveniente. Tentei justificar uma pergunta que, parecia-me, não devia ter feito, embora não percebesse porquê.
- É que já não os vejo há tanto tempo...
As cabeças voltaram-se para as iguarias em cima da mesa, serviram-se mais copos de vinho, cortaram-se mais nacos de broa e de queijo e de carne. A um canto, a ti Fernanda e a mulher que vive em frente, de quem não me lembro do nome, trocavam confidências à beira de uma malga de tigelada.
- É que ninguém os tira dali... A casa não tem condições, nunca teve! E, aos anos que lá estão, não fizeram uma única melhoria...
- Se havia necessidade disso. Já o filho se criou e casou, podiam fazer uns arranjos, comprar uma máquina de lavar roupa. Quando fui lá a última vez reparei que até têm um buraco no tecto...
- Máquina de lavar? Se eles nem luz na casa têm! É assim, que queres... Enquanto houver uma parede direita de lá não saem...
- Olha, o que é certo é que, apesar disso, nunca lhes vi uma discussão, sempre se deram bem. E quando eram novos não se privavam de festas e bailes... Corriam tudo!
- Lá isso é verdade. Eu até costumava dizer que eles começavam aquando do São Giraldo e só acabavam no Mont’alto!
- Não se pode dizer que não tenham aproveitado bem a vida...
Percebi, então, porque era a minha pergunta incómoda. Há pessoas que encontram a felicidade mais facilmente que outras.
O homem sobe as escadas de pedra e de musgo. Os passos vagarosos calculam o tempo e a distância dos degraus. A mão, apoiada na parede, acompanha esse tempo e essa distância. Leva a mão ao bolso, tira a chave de ferro e dá umas quantas voltas na fechadura. A porta abre, o homem empurra o peso da madeira e ouvem-se os passos a fazer chiar o soalho velho e gasto. O silêncio. O cheiro a pó e a pratos antigos. No escuro, procura:
- Cremilde, estás em casa?
A voz, vinda de um quarto sem janelas, afastado das divisões onde as janelas já não têm vidros, apenas portadas de madeira apodrecida, responde:
- Estou aqui. Demoraste... Anda, vem deitar-te. Tenho os pés frios...
O homem não acende a luz, porque não há luz para acender. Segue em direcção ao quarto, guiado pelo hábito de cinquenta anos a andar pelo mesmo chão, calcando as mesmas tábuas. À entrada, afasta a cortina puída que serve de porta, mas não volta a correr o pano. Senta-se na cama e começa a desapertar as botas.
- Devias ir ver as estrelas lá fora, Cremilde. Devias ir ver...
Para o meu tio Américo, cujos passos inspiraram uma grande parte deste conto, e que morreu hoje.
quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
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1 comentário:
era assim, feliz? :)
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