segunda-feira, 17 de março de 2008

penso...

Ando a escrever muito pouco. Aliás, a escrever pouco coisas que me agradem escrever. Não tenho tempo. Não me deixam. Para me tranquilizar, releio textos d'outrora.


O homem que colecciona olhares


Tem as algibeiras cheias de nada. De instantes em que os seus olhos se cruzam com a rapidez dos olhares desviados de quem passa. Sacos e sacos a abarrotar de puro nada, amontoados em casa, sem outro destino para eles. A memória; preserva nela os retratos imaginários, gravados a luz nos movimentos lentos. Tem olhares na algibeira. Vazios. Dar-lhes-á um sentido um dia. Quando se sentar e remexer nos sacos do esquecimento.

O homem que colecciona olhares vive na rua central de uma grande cidade. Todos os dias está rodeado de pernas apressadas, de pernas vagarosas, de pernas perdidas e desorientadas, de pernas hesitantes, de pernas que param e giram noutra direcção, de pernas que correm, de pernas aos pares, de pernas solitárias, de pernas de calça e de pernas despidas, de pernas roliças e de pernas magriças, de pernas, simplesmente. O homem que colecciona olhares não vê. Sente no suspiro do vento as vozes ainda caladas. Ouve no calor das chamas da tarde os sussurros das artérias da cidade. Os olhares caem-lhe, um a um, na caixinha velha de metal ferrugento, tilintam, rodopiam, e aí permanecem. Aos pés do homem que colecciona olhares todas as angústias de olhares que já ninguém quer. Olhares de lágrimas paridas, olhares desvirtuados, olhares salgados, olhares com medos presos, olhares de distâncias incolores, olhares que jorram gemidos. Todos aqui ficam, num plano entalado entre a realidade que nos foge por entre os dedos e o sentido imaterial das palavras.

Hoje tem as algibeiras cheias de um abismo inatingível. O homem que colecciona olhares não é um homem, mas um sopro de luz na dormência dos dias. O travo de solidão na objectiva do turista incansável. A melodia pausada, o acorde repetido até à exaustão. O anoitecer da consciência no acordar de uma manhã irrequieta. O homem que colecciona olhares é um vazio dentro de um corpo. Um vazio. Ao abrir os olhos para procurar a claridade do céu por cima, pensa.

Penso. Às vezes é preciso espremer lágrimas. E depois dançar uma música de silêncio cá dentro. Dançar a seguir, pela estrada fora, em direcção ao próximo olhar de tranquilidade.

1 comentário:

n. disse...

Laura, este texto é belíssimo, apesar (ou também por isso) da sua dureza. A progressão narrativa dá vertigens. Magistral.