Saí de lá a lamber feridas. Poucas vezes o teatro me deu um murro no estômago, mas ontem a tareia foi valente. Talvez porque não fosse teatro, mas "perfinst", uma forma híbrida que alia a performance à instalação. Levei bofetadas emocionais e saí a apanhar os cacos de mim que havia deixado cair desde que lá entrei. Penso que as baratas se abarbataram de um ou dois...
Esta imagem não pertence a "Visões Sobre Cemitério de Pianos", uma "perfinst" baseada no imaginário e nas personagens do livro de José Luís Peixoto, que pode ser vista desde ontem no Espaço Karnart*. Mas poderia pertencer. As cores das flores de plástico e os traços sépia dos rostos deixam apenas adivinhar as dores com que se cosem as "Visões..."
Ainda sinto nas narinas o cheiro do petróleo a queimar no candeeiro. Ainda ouço os gritos profundos. Ainda me sinto incomodada pela nudez bruta, pelo sexo, pela descoberta de intimidades obscenas. Ainda sinto vontade de chorar, não por me sentir triste, mas porque a demência crua e o espaço são demasiado avassaladores. Ainda tenho o corpo tolhido pelo vento frio a soprar entre os edifícios. Ainda ecoa algures cá dentro a música antiga, riscada, e o ruído da ventoínha. E o som da caixinha de música, enquanto debaixo da cama repousam despojos humanos. E os risos histéricos. E os pratos antigos nas paredes. E os mortos que vivem, e os vivos que morrem...
Há sustos lá dentro. E uma ternura imensa nas palavras e nas rendas que, sem nos darmos conta, adquirem uma dor que nos perfura até ao mais íntimo de nós. Sentimo-nos violados. Fundimo-nos nas paredes bolorentas e descascadas, para que a nossa presença não seja notada. Mas nós estamos lá, a levar um banho de abandono. Repito-me... saí de lá a lamber feridas.
"Visões Sobre Cemitério de Pianos"
De 29/Out. a 21/Dez., 2ª a 6ª, 19 horas.
Espaço Karnart, Rua da Escola de Medicina Veterinária 21, Lisboa
*Esta será a última peça a decorrer nas instalações da antiga Escola de Medicina Veterinária. Nunca tinha ido ao Espaço Karnart e, da primeira vez que lá entro, recebo a notícia de que o edifício vai ser usado para outros fins. E fico triste. Porque espaços assim há poucos. Muito poucos. As enormes mesas de mármore rosa e antigo, usadas para dissecar corpos de animais noutros tempos, são tão tragicamente belas, as paredes a descascar encerram uma tal carga emotiva, que aqui não se pode fazer outra coisa senão teatro. Mas "Visões Sobre Cemitério de Pianos" é a última actuação nestas salas. Na minha opinião, esta é uma simbiose e um canto de cisne perfeitos.
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5 comentários:
Porra... isso tudo?
pá... ainda estou a bater mal. Não consigo descrever aquilo. Tens de ir ver, mesmo. Eu vou lá voltar, porque se aquilo me afectou desta forma sem ter lido a obra, estou ansiosa por ir ver depois de a ler.
Ainda não vi a peça... mas li as tuas palavras e vi a tua fotografia... Esta foto do post é tua???? É um espanto!!!!
antónio: Aim, a foto é minha. Cemitério dos Prazeres... :)))
só sei que na noite em que fui ver a peça não consegui adormecer... xD
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