É praticamente meia-noite. O meu estômago já ronca depois de horas a fio sem meter nada que se veja no bucho. Não são horas de uma rapariga andar sozinha na rua, que diabo!, pensaria a minha mãe se me visse agora, ou o meu pai, ainda pior. Planos na cabeça para o dia de amanhã, tropeço neles enquanto atravesso a estrada - olho para um lado, olho para o outro, como se numa hora daquelas mais houvesse para além da fria aragem a arrepiar-me os pêlos dos braços. Endireito as costas e sei que, apesar de tudo, hoje foi um dia bom.
Faltam 5 minutos para chegar o eléctrico, dizem as luzinhas amarelas pontilhadas lá no alto. O 15, daqui a 5 minutos. Passa da meia-noite. E ele vem pelo passeio, bamboleante, de guitarra nos braços, calções largos e gorro apalhaçado na cabeça. Sorrio mal o vejo, e eis que lhe ouço os acordes. É uma guitarra ou um bandolim? Com esta idade já deveria saber a diferença. Parece-me um bandolim. Que se dane. Ele não está cá, fecha os olhos e toca, com o amor de quem acaricia uma namorada. E trauteia um suave e profundo "dairidaram dairidaré" com uma alegria apenas possível depois da meia-noite, numa paragem de eléctrico no Cais do Sodré. Eu entro. Ele entra a seguir. E toda a voz dele enche a carripana de madeira, indiferente aos solavancos. Chego ao Calvário e saio. Ele continua, de olhos fechados a cantar para dentro com toda a gana. E penso que também eu gostava de ser feliz daquela maneira.
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1 comentário:
Muito bonito, o teu texto. Como sempre, aliás...
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