Tenho um medo terrível de escrever pela primeira vez num caderno em branco. Um medo irracional, maior que eu, maior que tudo aquilo que poderia algum dia escrever. Há um caderno novo, forrado a tecido, cheio de arabescos caleidoscópicos, pousado numa mesa lá em casa. Fechado. Ainda fechado depois de ter rasgado o papel de embrulho há meses e meses. Fechado num branco infindo, um vazio macio e aterrorizador.
Tenho medo das memórias que me escapam e não são escritas no branco macio e liso de tantas folhas brancas. Tenho medo de escrevê-las e também de não as escrever. Gostava um dia de abrir o caderno e não me lembrar de, uma a uma, ter já marcado as páginas a negro, a azul, a caneta ou lápis, não importam meios nem cores, somente as palavras e as memórias.
Guardadas entre as páginas outrora brancas e macias o primeiro sorriso no olhar, um primeiro beijo, a luz de um amanhecer, a cor da rua num dia de Setembro, o cheiro a flores a entrar pela janela, a conversa das mulheres no autocarro, o adormercer e o acordar, o sabor de um beijo na pele e dos lábios próximos, o gostar tanto, mas tanto, que gostar assim só pode doer, a contemplação do infinito, as solidões derradeiras, os caminhos rotineiros e os que se descobrem quando apetece virar só porque sim, as horas e os dias e as noites e os segundos que somam ansiedades e os logo se vê, a falta de ideias e as ideias a mais, as chávenas de café e o barulho da colher a diluir o açúcar, e a música a escorrer pelas folhas brancas abaixo...
Dói-me a primeira palavra num caderno em branco.